História oral e a arte da escuta + Registros pessoais e histórias de vida no setor elétrico

Postado em 29/10/2021
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O último dia do Encontro Internacional de Preservação e Memória, Preserva.Me 2021, sexta-feira, 29 de outubro, contou, na parte da manhã, com o painel "História oral e a arte da escuta", com Alessandro Portelli, presidente do Circolo Gianni Bosio - Roma, escola de música popular e história oral. Com mediação de Ana Paula Goulart, doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e consultora da Memória da Eletricidade, o pesquisador italiano falou sua experiência com história oral e fez um saboroso resumo de como essa técnica se desenvolveu, a despeito de críticas dos setores mais conservadores da academia.

No painel da tarde e último do Preserva.Me 2021, “Registros pessoais e histórias de vida no setor elétrico”, Rafaela Oliveira, gestora de arquivo e pesquisa na Fundação Força e Luz, do Museu da Eletricidade do Rio Grande do Sul e do Memorial Érico Veríssimo, fez uma apresentação sobre o acervo de Noé Mello Freitas, primeiro presidente da CEEE do Rio Grande do Sul. A mediação foi de Amanda Carvalho, gerente de Acervo e Pesquisa na Memória da Eletricidade.

Sobre o Preserva.Me 2021

O Preserva.Me 2021 tem como tema de sua 7ª edição “Arquivos Pessoais e Histórias de Vida”. O evento acontece entre os dias 25 e 29 de outubro, apresentando dez painéis, sempre as 10h e às 16h, com transmissão ao vivo pelo canal da Memória da Eletricidade no Youtube. Para conferir a programação, inscrever-se gratuitamente no evento ou assistir aos vídeos com os painéis anteriores, basta entrar na página do Preserva.Me 2021 clicando aqui.

Primeiro painel: "História oral e a arte da escuta"

O historiador Alessandro Portelli abriu sua exposição relembrando um artigo de Gianni Bosio ("Elogio ao gravador") que mostra como a advento da eletricidade permitiu o desenvolvimento da pesquisa em história oral.

– Já que estamos falando de eletricidade, talvez um momento divisor de águas na história da tomada da consciência crítica da classe trabalhadora tenha sido formulado num ensaio de Gianni Bosio, que era um historiador independente. Em 1966, ele escreveu um ensaio chamado "In praise of the tape recorder" ("Elogio ao gravador"), que é uma máquina que precisa da energia elétrica para funcionar. No texto, Bosio afirmou que, durante séculos, a cultura das classes não hegemônicas não foi estudada, foi estereotipada, principalmente porque não tínhamos maneiras de documentar para estudar e analisar essas classes de maneira séria – disse. – E é isso que esta máquina elétrica, o gravador, fez por nós e pela cultura popular e da classe trabalho no mundo todo. O gravador nos permitiu congelar o fluxo da palavra falada, coisa que, durante séculos, vinha sendo feita através da escrita. Pudemos escutar várias e várias vezes essas gravações.

Portelli citou alguma iniciativas pioneiras em história oral, como o registro de histórias de vida nos EUA nos anos 30 e na Itália no anos 50, mas afirmou que esse tipo de pesquisa como método para o estudo da História só se consolidou mais tarde.

– Foi o começo de um verdadeiro questionamento dos métodos de pesquisa histórica, que Bosio insistia em fazer, e que consiste em usar as fontes como referência. Antes, recorríamos a documentos oficiais para contar a história das classes populares – lembrou. – Mas, nesses documentos, a fala da classe trabalhadora sempre passa por algum tipo de filtro. Um exemplo: uma fonte de estudo das classes populares tem sido os processos judiciais. Porém, nestes casos, o que temos não é o registro das palavras de representantes das classes populares, mas uma transcrição dessa fala feita por um oficial da corte judicial que representa o poder.

Desenvolvimento de uma consciência crítica

Portelli destaca que o historiador precisa escutar para entender:

– Não se trata de dar voz às classes populares, porque eles já têm voz, mas de escutar e criticamente estudar e entender, de uma forma que possamos devolver essa consciência crítica, isto é, o que as classes populares têm a dizer a respeito de si mesmas.

Os depoimentos de trabalhadores dialogam com os documentos oficiais e servem de contraponto à fala das classes hegemônicas.

– O Departamento de História Oral da Universidade de Columbia foi fundado em 1949 com a tarefa de entrevistar políticos e empresários importantes. Os primeiros arquivos sonoros na Itália foram criados sob o fascismo, em 1926, por Marconi, com o objetivo de preservar a voz dos grandes homens. Durante anos, registraram depoimentos de generais e políticos – contou. – O Federal Writers' Project começou nos Estados Unidos com o objetivo de entrevistar ex-escravizados. Foi a primeira vez que ex-escravizados puderam ser escutados seriamente. Tão seriamente, que levou 30 anos até que historiadores pudessem ter acesso a essas entrevistas para poder reconstruir e reescrever a narrativa da escravidão. Foi aí que tudo começou.

Reações negativas na academia e distinção entre fonte e documento

Mas a ideia de se usar depoimentos de pessoas como fonte para a pesquisa histórica foi recebida de forma negativa por algumas instituições, segundo Portelli:

– Diziam que essas fontes não são confiáveis, a memória falha e questionavam como se podia generalizar a partir do depoimento de uma única pessoa para descrever um quadro social. Além disso, segundo esses críticos, o entrevistador "contamina" a fonte durante a entrevista.

Neste ponto, o historiador deve estabelecer uma distinção entre fonte e documento.

– Fonte é um sujeito que questiona através da linguagem falada. Documento é um rastro falado ou escrito do ato da fala – definiu Portelli.– O que temos de melhor nos arquivos são os registros, os documentos orais feitos a partir dessas fontes. E essas fontes são as pessoas. Isso gera uma complexa relação entre documento e fonte. O que torna um documento, uma fita cassete, um papel, tão precioso é que ele estático, não muda, está lá, nós podemos manipular. Mas a fonte, a pessoa que originalmente criou o documento está viva e permanece mudando. O que temos nos nossos arquivos é um flagrante de um objeto em movimento. Mas a grande questão é: a fonte oral não existe, a não ser que a criemos. Diante do pensamento positivista de não interferir com a fonte, o procedimento de pesquisa de história oral foi um escândalo. A primeira reação dos fundadores da História como ciência foi questionar se uma fonte sonora é tão confiável quanto uma fonte escrita. A resposta é: claro. Nós podemos verificar, comprovar, checar. 

Para Portelli, a entrevista não é uma tentativa de extrair uma narrativa pré-existente de um ser humano. É um encontro cooperativo entre mundos diferentes:

– Entre acadêmicos e trabalhadores, homens e mulheres, jovens e velhos, pretos e brancos. Pessoas que nunca haviam conversado antes. Quando um indígena americano conversa com um escritor branco para fazer a sua autobiografia, não temos uma situação de pureza. Temos o encontro de um homem branco com um nativo americano. Talvez a minha experiência mais importante tenha sido quando uma senhora afro-americana fantástica me disse "por causa das histórias sobre escravidão que foram contadas, porque você é branco, eu não confio em você". Isso foi maravilhoso. Ela confiava em mim a ponto de gastar horas da sua vida contando sua história, mas deixou claro que, ao mesmo tempo, não confiava. 

Subjetividade é um fato histórico imaterial

Alessandro Portelli cita sua própria pesquisa para reforçar a ideia de pesquisa em história oral como diálogo.

– Os trabalhadores da indústria do aço que entrevistei em Terni, cidade italiana onde cresci, erravam datas e um vários fatos. Eles não são historiadores, mas me contaram lindas histórias. Você não joga fora uma boa história porque ela não é verdadeira – recomendou. – Você pergunta e descobre o que ela significa. Estamos falando de uma outra definição de credibilidade, trazida pela historiadora italiana Luisa Passerini, e que inclui imaginação, sonho, desejo, que inclui subjetividade. E subjetividade é um fato histórico. Imaterial, mas com consequências materiais.

E o mesmo se aplica à memória:

– Memória não é a memória do computador. Memória é o computador, para citarmos outro aparelho elétrico. Memória é onde a informação entra ao longo do tempo e é onde o sentido é constantemente questionado. Entrevistar uma pessoas em 2019 sobre acontecimentos de 1943 é tão incerto quanto pesquisar documentos de 1943, porque todos os documentos de 1943 são totalmente não confiáveis. Pessoas que estavam na resistência, no submundo naquele ano não podiam escrever por causa da repressão fascista. Memória não é apenas o rastro da experiência. Memória é o trabalho que estabelece o relacionamento entre o tempo lembrado e o tempo em que estamos lembrando. Portanto, essas entrevistas sobre 1943 nos dariam o significado de 1943 em 2019. 

Arquivos sonoros querem sair do armário

Para o historiador italiano, arquivos e museus devem ser franqueados às pessoas, abertos para a sociedade.

– Um grande escritor afro-americano chamou o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) de "o maior centro de detenção de arte do mundo". E, realmente, frequentemente museus e arquivos são avessos a permitir que as pessoas acessem suas poderosas coleções – criticou. – E o que é o arquivo sonoro? É uma sala com um armário. De dentro desse armário milhares de vozes estão gritando "nós queremos sair, nós queremos sair!". E a tarefa do arquivo é: uma vez que os estão dentro, não devem permanecer congeladas e presas, elas deveriam sair. Elas podem sair em livros, em sites, em podcasts, concertos, teatros.

Portelli voltou a citar sua pesquisa em Terni para frisar a necessidade da escuta por parte do pesquisador.

– O pesquisador não dá voz a ninguém. Ele recebe voz das pessoas, que registram no seu gravador suas histórias, seu canto. Mas o que o pesquisador dá em troca? Basicamente, escutar. O pesquisador precisa ser flexível na escuta. Meu projeto em Terni, por exemplo, era descobrir o que aconteceu com os trabalhadores da cidade entre 1949 e 1953 e como isso era lembrado – explicou. – Na primeira entrevista, estou conversando com um trabalhador, quando sua esposa agarra o microfone e conta a história de seu bisavô, que, num dia chuvoso, deixou sua esposa em casa para se juntar à luta de Giuseppe Garibaldi, o libertador da Itália. Ele lutou ao lado de Garibaldi e voltou para sua esposa quatro anos depois. Numa situação dessas, o que o pesquisador faz? Meu projeto era restrito ao período entre 1949 e 1953. Eu digo para à pessoa "desculpe, mas isso está fora do período do meu livro"? Não. Nós damos espaço para as pessoas, uma oportunidade não só de falar, mas de ser ouvida.

Por fim, Alessandro Portelli alerta para o caráter volátil das fontes históricas:

– Fontes orais são várias e mudam continuamente. Apesar disso, nenhum historiador contemporâneo sério pensaria em fazer história contemporânea sem as fontes orais. E, pelo fato de toda fonte oral ser intrinsecamente hipotética e problemática, toda História é intrinsecamente hipotética e problemática. Todas as fontes históricas são incompletas. Não existe uma coisa chamada trabalho definitivo.

Segundo painel: "Registros pessoais e histórias de vida no Setor Elétrico"


No último painel do evento, “Registros pessoais e histórias de vida no setor elétrico”, Rafaela Oliveira, apresentou o acervo de Noé Mello Freitas, primeiro presidente da CEEE do Rio Grande do Sul.

– É um acervo muito rico, muito bonito. É um trabalho arquivístico bem legal de fazer, com técnicas de arquivologia muito interessantes. Essa documentação não pode se perder, e aqui temos todas as técnicas de conservação – explicou Oliveira.

O personagem

Mello Freitas foi uma figura importante no campo da eletricidade no Brasil ao longo do século XX, Nascido em 1902, o gaúcho, ainda criança, já mexia com instalações elétricas, e com 16 anos foi para Porto Alegre para fazer o ensino médio técnico em eletricidade, e lá conheceu sua futura esposa.

– Dividi o acervo dele em três etapas, infância, juventude e ele já adulto atuando no setor de eletricidade. Hoje não abordei muito sua vida profissional como engenheiro, preferindo os aspectos da vida privada – disse ela.

O primeiro emprego, recém-formado, foi como engenheiro de obras na usina elétrica de Buraty. Daí, não parou mais, envolvendo-se na construção de inúmeras usinas e assumindo a presidência da CEEE em 1952, quando ela se torna autarquia, onde fica até 1957, quando pede demissão e começa a prestar serviços para prefeituras e uma multinacional japonesa. Um trabalho ao qual era extremamente dedicado e que também era uma verdadeira paixão.

– Ele colecionava postais, principalmente de usinas elétricas e barragens. E quando saía para passear de carro com os filhos, eles reclamavam porque ele parava e passava horas examinando instalações elétricas – contou Oliveira.

Procedimentos com acervo em andamento

Essa vida rica foi contada no livro Por trás da usina, de Adão Eunes Albuquerque, também funcionário da CEEE, lançado em 2015. E foi então que se deu o resgate dos arquivos de Mello Freitas.

– O Adão arrecadou o material do Noé quando escreveu o livro. A todos que ele entrevistava, perguntava se tinham material para doar para o Museu da Eletricidade. Quando entrevistou os irmãos, ele lhes disse que o arquivo seria muito mais bem conservado em um museu. E assim, o acervo foi sendo composto. Quando cheguei à instituição ele já estava pronto – disse Oliveira.

Os procedimentos com esse acervo estão em andamento. Ainda falta muito para ele ser disponibilizado para o público.

– Ainda estou fazendo a identificação do acervo. A ideia é fazer um trabalho de digitalização, mas antes de chegar nessa etapa tenho de fazer o trabalho de identificação, ver o que tem de material interessante, classificar a documentação e aí, sim, fazer o tratamento e a digitalização para que o material possa vir a público. Não adianta disponibilizar uma foto sem dizer o que ela é. A ideia é dar acesso às pessoas. 

O trabalho é complexo. Segundo Rafaela Oliveira, havia apenas parte das fotos e documentos identificados, outros foram identificados na biografia e, com muito do material não identificado, ela precisou da ajuda do biógrafo para fazer isso. 

– O que não conseguimos identificar, fica mais à parte. Mas não basta isso. É importante, também, fazer um estudo da época, um estudo social por trás para saber o que estava acontecendo no período – explicou.

Confira aqui a programação do Preserva.Me 2021.