O luto na pandemia

Postado em 26/04/2021
Igor Sacramento

Igor Sacramento é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Na UFRJ, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação. Na Fiocruz, além de editor científico da Revista de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, é professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde. Na Memória, colabora com as lives "Memórias da Pandemia".

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Desde os tempos mais remotos, o tema da morte ocupou um lugar preponderante nas sociedades humanas, a morte nos civiliza. A morte é um exemplo paradigmático de um fato social total. Em outras palavras, todos nós temos a certeza de que morreremos e de que ao longo de nossa vida haverá mortes ao nosso redor. O contexto social em que ocorre será definidor em nossa forma de pensar, agir e sentir. Assim, a preparação do corpo, os ritos fúnebres, o sofrimento, o luto, bem como as crenças e a forma como conduzimos nossas vidas, estão intimamente ligados à nossa visão de mundo e sua concepção de morte. Mas em que contextos e circunstâncias o fenômeno do novo coronavírus aparece agora?

Em março de 2020, em um momento de grandes desafios causados pelo Covid-19, a Memória da Eletricidade lançou #MemóriaDaPandemia, uma série de lives nos seus canais oficiais no Instagram, Facebook e YouTube. O projeto atende à demanda por informações seguras e debates qualificados nas áreas de Saúde, Arte & Cultura e Gestão & Liderança. Com curadoria e apresentação do professor Igor Sacramento, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Os episódios de #MemóriaDaPandemia são transmitidos todas as segundas, quartas e sextas-feiras, às 10h.

A morte é universal, mas as formas de morrer e significar a morte são social e culturalmente definidas. A pandemia COVID-19 interrompeu experiências usuais de luto e foram necessárias modificações nas abordagens para apoiar o luto. As medidas de contenção e controle da disseminação do novo coronavírus (distanciamento social, uso de máscaras, higienização com álcool em gel, isolamento) também se aplicam no contexto do luto, o que acrescenta um trauma ao da própria morte: primeiro, os cadáveres são considerados potencialmente contaminantes e, por isso, são depositados o mais rápido possível em um saco para cadáveres, que nunca será reaberto. Portanto, parece impossível para as famílias saudarem seu ente querido falecido uma última vez.

Erika Pallottino, em live para a Memória da Eletricidade, explica que a resposta de luto é uma reação normal, esperada e prevista quando perdemos um ente querido, quando um vínculo significativo é rompido. Segundo a psicóloga especialista em luto, idealizadora e coordenadora do Instituto Entrelaços, naturalmente nos enlutamos e, algum tempo neste processo, pranteamos e lamentamos quem perdemos. Acontece que, diante da pandemia de Covid-19, o processo de luto com o qual nos acostumamos está interrompido, bloqueado, bruscamente alterado.

Luto pode encontrar variáveis refratárias as intervenções psicológicas

Diante da pandemia da Covid-19 com múltiplas mortes que podem acontecer em uma mesma família pela virulência catastrófica da pandemia, o processo de luto pode encontrar variáveis refratárias as intervenções psicológicas. Como sobreviventes de uma pandemia, transtornos ligados ao estresse agudo e traumático podem repercutir na qualidade de vida emocional de muitas pessoas, empobrecendo a funcionalidade vital, chegando a situações de franco adoecimento psíquico levando até ao suicídio. Por medidas sanitárias, passam a ser evitados ou proibidos atos e processos amortecedores do luto: compartilhar o sofrimento, chorar junto, abraçar-se, velar. As circunstâncias, o contexto e as consequências da morte no cenário da Covid-19 transformam as respostas de luto de sobremaneira que ainda teremos que aguardar alguns anos para compreender a dinâmica desse luto, diferente também, de tudo que conhecemos deste processo.

A tecnologia, por mais avançada que seja, não impede a morte, embora seja muito eficiente, como os psicotrópicos ou as substâncias viciantes, para interromper a dor, o desenvolvimento do luto e a incerteza que a morte gera. Então, a percepção de luto, o vínculo com o que foi perdido e a resolução adequada ou inadequada do mesmo é mediado por elementos subjetivos e pelo processo de socialização e estrutura social que fornecerão a cada pessoa modos de aplacar a dor das perdas na vida.

Se o luto é a resposta emocional à perda de alguém ou algo, ele se manifesta no processo de reações que se seguem a uma separação. Os processos de luto nos acompanham durante toda a nossa vida, desde o nascimento (primeira pausa) até a morte (última pausa). Essa última ruptura quando ocorre em relação aos parentes e entes queridos, é considerada a mais aguda e causa dor ou trauma. O luto pela morte de um ente querido é o mais agudo e o mais difícil de superar. O evento da morte de um ente querido também influencia a percepção do luto de diferentes maneiras. O tipo de morte também está relacionado à intensidade com que o luto é vivenciado. Uma morte trágica não é a mesma que segue uma doença que permitiu a preparação emocional para iniciar a elaboração do luto com antecedência. Da mesma forma, a dor antecipada de que a pessoa querida, quando da proximidade de sua morte, teve anunciada a finitude por meio da comunicação de um prognóstico fatal. A morte por pandemia é uma perda que representa uma tipologia diferente do luto onde o agudo, doloroso, trágico, repentino é conjugado: nenhuma possibilidade de rituais de luto, ou despedidas antes da morte, ou impossibilitado de comparecer a funerais.

Por trás das notícias sobre sintomas, números de casos e possíveis curas está a presença constante de luto e perda. Uma morte súbita e inesperada aumenta o trauma da perda. Assim, por exemplo, enlutar alguém perdido em um acidente de carro será mais complicado do que enlutar alguém que lentamente escapou foi se aproximando da morte. E, com Covid-19, mesmo que a pessoa fique hospitalizada por um tempo antes de falecer, há o fardo extra de não poder estar com ela devido ao risco de infecção, tornando sua passagem mais semelhante a uma morte por acidente ou violência. Isso significa que muitas das condutas que usualmente poderíamos fazer – estar com eles, consolá-los, dizer nosso adeus – não estão disponíveis.


O luto é a saudade de quem amou muito

Um dos aspectos mais violentos é que a reunião usual de funerais é proibida. Isso pode ter um efeito direto na sua capacidade de processar o luto. A falta de toque e apoio social é muito significativa, porque essa conexão nos permite liberar muitas de nossas emoções, encontro conforto, cumplicidade e carinho. Estar com outras pessoas pode ajudar em ambos, dar consolo, apoiar.

Conforme explicou a professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, Daniela Romão-Dias, numa live para a série #MemóriadaPandemia, o luto é uma forma de sofrimento caracterizada por um rearranjo de nossas relações com o mundo e com nós mesmos diante da subtração de uma pessoa ou objeto ao qual estivemos, em parte significativa de nossa existência, ligados afetivamente. É uma forma de expressão da perda de alguém ou algo que nos dava colorido à vida. Em concordância, Erika Pallottino afirmou: "o luto é a saudade de quem amou muito, continua amando". Por isso, sente saudades. 

Confira abaixo a programação desta semana de lives da #MemóriaDaPandemia:

Quarta-feira (28/4), às 10h — "O Brasil e a crise da Covid-19". Igor Sacramento conversa com Rosinha Machado Carrion, socióloga e professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Sexta-feira (30/4) às 10h — "Desinformação e vacinação". Igor Sacramento conversa com Ana Carolina Monari, jornalista e doutoranda em Saúde pela Fiocruz.

Igor Sacramento

Igor Sacramento é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Na UFRJ, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação. Na Fiocruz, além de editor científico da Revista de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, é professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde. Na Memória, colabora com as lives "Memórias da Pandemia".