Brasil inicia testes da primeira estação do mundo que transforma etanol em hidrogênio

Memória da Eletricidade entrevistou professor da USP que coordena o projeto
30/09/2025

A USP testa a primeira estação experimental do mundo dedicada à produção de hidrogênio renovável a partir do etanol. Inaugurada em julho de 2024, na Cidade Universitária, em São Paulo, a planta piloto, que se trata de um projeto de P&D, produz cem quilos de combustível por dia, utilizado para abastecer três ônibus que circulam pela universidade e testado em carros movidos a H2. 

Para entender mais sobre a importância da iniciativa e como ela é conduzida, a Memória da Eletricidade conversou com o professor Julio Meneghini, diretor científico do Centro de Pesquisa e Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI, na sigla em inglês) da USP, responsável pelo projeto. Ele ressaltou que o uso do etanol como insumo coloca o Brasil em posição privilegiada para liderar a produção de hidrogênio renovável, aproveitando a infraestrutura consolidada de biocombustíveis.

O pesquisador explicou ainda que a planta serve como plataforma de testes para validar a tecnologia em condições reais, reunindo dados técnicos que poderão viabilizar a replicação do modelo em escala comercial e acelerar a transição para uma economia de baixo carbono. Além disso, também detalhou a dinâmica de produção e projetou o futuro da estação. Leia a entrevista completa abaixo:

ME: A estação experimental da USP para produção de hidrogênio renovável a partir do etanol é a primeira do mundo com essa proposta. Poderia nos contar como surgiu a ideia de desenvolver esse projeto e qual a importância de ele estar sediado na Cidade Universitária?

JM: A ideia nasceu do reconhecimento de que o Brasil tem uma vantagem competitiva única: uma cadeia consolidada de produção e distribuição de etanol. Essa infraestrutura nos permite pensar em soluções de hidrogênio que sejam eficientes não apenas do ponto de vista ambiental, mas também logístico e econômico. Produzir o hidrogênio no próprio local de consumo elimina a necessidade de transporte de hidrogênio comprimido ou liquefeito, o que exige caminhões, e ainda aproveita um insumo que é abundante e renovável.

Mas nada disso seria possível sem a participação de parceiros estratégicos que abraçaram a ideia desde o início. O projeto tem investimento total de R$ 50 milhões da Shell Brasil, obtido por meio da cláusula de PD&I da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), e reúne empresas e instituições com papéis complementares. A Hytron desenvolveu e fabricou o reformador a vapor de etanol, onde ocorre a conversão do etanol em hidrogênio. A Raízen fornece o etanol de cana-de-açúcar — ela é a maior produtora global desse combustível —, e o Instituto SENAI de Inovação em Biossintéticos e Fibras do SENAI CETIQT realiza simulações computacionais para aumentar a eficiência do equipamento e a taxa de conversão.

O papel do RCGI é conduzir a pesquisa e o desenvolvimento, avaliando, nesta fase, a taxa de conversão do etanol em hidrogênio e o desempenho do combustível em veículos como ônibus e automóveis movidos a célula de combustível. Ao reunir dados técnicos e operacionais, o Centro cria a base para que essa tecnologia possa ser replicada em maior escala.

Estar sediado na Cidade Universitária da USP é um diferencial estratégico, pois garante acesso a uma infraestrutura científica robusta, à colaboração direta com pesquisadores de excelência e a um ecossistema acadêmico e tecnológico capaz de acelerar o desenvolvimento e a validação dessa inovação.

ME: Qual é a capacidade atual de produção da planta e como funciona o abastecimento de veículos como ônibus da USP e automóveis movidos a célula de combustível?

JM: Estamos operando em escala piloto, com capacidade para produzir 100 quilos de hidrogênio por dia, sendo que na própria planta há um posto de abastecimento. Esse volume permitirá realizar testes com diferentes tipos de aplicação, como ônibus e veículos leves a célula a combustível, possibilitando avaliar tanto a taxa de conversão do etanol em hidrogênio quanto o consumo e o rendimento real em cada caso. Esses testes vêm sendo realizados em parceria com montadoras de veículos movidos a hidrogênio — como o Mirai da Toyota, o Nexo da Hyundai, além de ônibus da Marcopolo — exclusivamente para fins de avaliação tecnológica e desempenho. Trata-se de uma escala bem acima da laboratorial, mas ainda anterior à comercial.

ME: O processo de reforma a vapor do etanol é central para a produção de hidrogênio nessa estação. Poderia explicar de forma resumida como ele funciona, quais insumos são necessários e qual é o nível de pureza alcançado no produto final?

JM: A reforma a vapor do etanol é um processo químico em que o etanol reage com água, sob altas temperaturas, liberando hidrogênio e dióxido de carbono. No nosso caso, esse CO₂ é biogênico — proveniente da cana-de-açúcar — e pode ser compensado no próprio ciclo do cultivo, o que torna o processo sustentável. Os principais insumos são etanol e água, ambos amplamente disponíveis no Brasil. Além disso, o calor necessário para a reação é gerado no próprio processo, o que reduz o consumo energético. O resultado é um hidrogênio de alta pureza, adequado para uso em células a combustível, que geram eletricidade a bordo de veículos sem emissão de poluentes, apenas vapor d’água.

ME: O Brasil já possui uma infraestrutura consolidada para o etanol. Como isso favorece a produção e distribuição do hidrogênio? De que forma o projeto lida com o CO₂ gerado durante o processo, considerando a busca pela neutralidade de carbono?

JM: Essa é uma das grandes vantagens do nosso modelo. Em vez de transportar hidrogênio comprimido — o que exige caminhões especiais e alto custo — podemos transportar o etanol e produzir o hidrogênio no próprio local de consumo, seja em um posto, em uma garagem de ônibus ou em um terminal portuário. Isso resolve boa parte do desafio logístico e reduz custos de distribuição. Quanto ao CO₂, ele é biogênico, oriundo de uma fonte renovável, e a própria plantação de cana faz a absorção desse carbono. No longo prazo, podemos integrar sistemas de captura e armazenamento (CCS) para neutralizar completamente as emissões, tornando o processo carbono negativo.

ME: Além da mobilidade sustentável, quais outros setores da economia brasileira podem ser beneficiados por essa tecnologia? Quais são as perspectivas para a aplicação do hidrogênio renovável na indústria, no transporte de cargas e em outros segmentos estratégicos?

JM: O uso do hidrogênio a partir do etanol não se limita ao transporte urbano. Ele também abre possibilidades para a descarbonização da indústria em setores com alto nível de emissões, como a siderúrgica e a cimenteira, além dos setores químico e petroquímico, na produção de fertilizantes e no transporte de carga e passageiros em larga escala. No transporte rodoviário pesado — especialmente caminhões e veículos fora de estrada usados na mineração —, o hidrogênio desponta como solução promissora, pois permite maior autonomia com menor peso e reabastecimento mais rápido que as baterias, preservando a viabilidade operacional.

Em ferrovias, o hidrogênio também é uma alternativa interessante, pois evita a necessidade de eletrificar longos trechos de linha. E, olhando adiante, há aplicações possíveis na aviação regional, onde a densidade energética do hidrogênio pode viabilizar voos de média distância sem emissões na operação. Essa versatilidade reforça a visão do RCGI de que, na transição energética, não haverá uma tecnologia única: veículos leves podem seguir o caminho do elétrico puro, enquanto aplicações de alta demanda energética encontram no hidrogênio uma alternativa mais eficiente e sustentável

ME: Quais são os próximos passos para expandir essa tecnologia? Já existem planos para replicar esta estação em outras localidades ou para aumentar a escala de produção de forma comercial?

JM: A partir dos dados obtidos nesta fase experimental, será possível avaliar a viabilidade técnica e econômica da tecnologia, o que pode abrir espaço para que empresas e governos considerem investimentos em novas unidades. Antes de chegar a uma operação em escala comercial — que exigiria de cinco a dez vezes a capacidade atual —, é provável que haja uma fase intermediária, com instalações de porte ampliado para validar desempenho e custos em condições mais próximas da realidade do mercado. No futuro, esse modelo também poderá ser adaptado e exportado, inclusive para países com infraestrutura de etanol menos robusta, mas que possam se beneficiar dessa abordagem.

ME: Como o RCGI atua como catalisador dessa inovação e qual é a contribuição do Centro para conectar pesquisa científica, aplicação prática e políticas públicas de transição energética no Brasil?

JM: O RCGI exerce justamente essa função de ponte: conecta academia, empresas e governo em torno de projetos que começam como pesquisa e evoluem para soluções concretas. No caso da planta de hidrogênio a partir do etanol, o Centro conduz o desenvolvimento tecnológico e os testes, contando, de forma indireta, com o respaldo do programa Advocacy, que atua transversalmente em todos os seus eixos de pesquisa. Esse programa busca compreender e enfrentar, desde as fases iniciais de cada tecnologia, as questões de normalização, regulamentação e políticas públicas associadas. Entre os projetos em andamento estão propostas de normalização internacional para tecnologias de captura e utilização de CO₂ (CCU) e recomendações para marcos legais e regulatórios voltados a NBS, CCU, GHG e BECCS.; e ações de percepção social e diplomacia científica voltadas à transição para uma sociedade de baixo carbono. Esse trabalho cria um ambiente favorável para que projetos como o da planta de hidrogênio se apoiem em estudos sobre tecnologias de baixo carbono, ampliando as condições para que avancem também no campo regulatório.

ME: O Brasil tem potencial para se tornar um líder global na produção de hidrogênio renovável. Na sua visão, que ações são necessárias para alcançar essa posição e de que maneira projetos como este podem acelerar esse caminho?

JM: O Brasil reúne um conjunto de condições para assumir um papel de liderança: recursos naturais abundantes, matriz elétrica majoritariamente renovável, experiência consolidada com biocombustíveis, infraestrutura logística para o etanol e uma base científica e tecnológica robusta. Para que esse potencial se concretize, será necessário avançar em políticas públicas claras, incentivos fiscais, linhas de financiamento específicas e uma regulamentação que dê segurança ao investidor. Projetos como o da planta de hidrogênio a partir do etanol cumprem um papel estratégico ao demonstrar, na prática, o potencial dessa solução e gerar conhecimento técnico-científico essencial para avaliar sua viabilidade. Iniciativas desse tipo, construídas em parceria entre universidade e empresas, podem abrir caminho para aplicações comerciais no futuro e contribuir para acelerar a transição energética do país.

ME: Que mensagem o senhor deixaria para inspirar pesquisadores, empresas e formuladores de políticas a investir em soluções energéticas limpas e inovadoras como a desenvolvida na planta de hidrogênio a partir do etanol?

JM: O hidrogênio não é uma solução única, mas fará parte de um mix energético que vai transformar a forma como produzimos, transportamos e consumimos energia. Minha mensagem é: não esperem o futuro chegar para agir. O momento de investir em inovação sustentável é agora, aproveitando o que o Brasil já tem de melhor — seus recursos renováveis, seu capital humano e sua capacidade científica. Se unirmos esforços, poderemos não apenas ajudar a descarbonizar a economia, mas também criar novos mercados, gerar empregos de qualidade e projetar o país como protagonista da transição energética global.

Uma linha de transmissão entre o passado e o futuro

Um dos compromissos centrais da Memória da Eletricidade é registrar avanços, inovações e marcos que transformam o setor energético brasileiro, como este projeto, que representa um passo decisivo para reduzir a dependência de combustíveis fósseis e acelerar a transição para uma matriz limpa. Para conhecer outros momentos que marcaram a evolução da energia no país, consulte nosso acervo e explore a história rica e diversa do setor.

Julio Meneghini 

Professor Titular de Aplicações e Princípios em Engenharia Mecânica, Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, Doutor em Aeronáutica, Imperial College – Universidade de Londres (1993). DIC-Diploma do Imperial College em Engenharia Aeronáutica (1993). Livre Docente em Mecânica dos Fluidos, Universidade de São Paulo – USP (2002). Mestre em Ciências em Engenharia Mecânica pela USP (1989). Possui graduação em Física (bacharelado) pelo Instituto de Física da USP (1989) e em Engenharia Civil (EEM, 1984). É bolsista CNPq (PQ) nível 1A.

Tem atuado em projetos de pesquisa em Engenharia Aeronáutica, Mecânica, Naval e Oceânica, como coordenador ou consultor. Suas principais áreas de interesse são investigações com foco em desprendimento de vórtices, vibração induzida por vórtices, dinâmica de fluidos computacional, fluxo de corpos blefes e aeroacústica. Atuou como Pesquisador Associado do Departamento de Aeronáutica-Imperial College em 1995. Desde 1994, é membro acadêmico do Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EPUSP).

É Diretor Científico do Centro de Pesquisa para Inovação em Gás (RCGI), patrocinado pela FAPESP-SHELL. É coordenador do Grupo de Pesquisa Fluid & Dynamics (NDF) da EPUSP. É autor ou coautor de mais de 130 artigos publicados. Tem coordenado projetos de pesquisa patrocinados pela Petrobras, Shell, Embraer, Fapesp, Finep/CTPetro, CNPq/CTPetro, Voith-Siemens, British Petroleum (BP), Oxiteno e BG-Group. Foi nomeado em julho de 2017 Membro Titular da Academia de Ciências do Estado de São Paulo – “Academia de Ciências do Estado de São Paulo” – ACIESP.

Atualmente é responsável pelos cursos de graduação em Mecânica dos Fluidos II e Aerodinâmica da EPUSP. Também é responsável pelos cursos de pós-graduação de Disposição de Vórtices, Vibração Induzida por Fluxo, Estabilidade Hidrodinâmica e Dinâmica Molecular (Fluxo Nano e Microfluido) da EPUSP.