Cartografia das Memórias

Postado em 28/08/2020
Hércules Xavier

Doutorando em Memória Social pela UNIRIO, mestre em Patrimônio Cultura pelo IPHAN, mestrando em Filosofia e Ensino pelo CEFET Maracanã/RJ, especialista em Produção Cultural pela UCAM, licenciado em filosofia pela UNIRIO, graduando em licenciatura e bacharelado em português/latim pela UERJ.

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Recordar é preciso

O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto.
Sou eternamente náufraga,
mas os fundos oceanos não me amedrontam
e nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a bóia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.
(Conceição Evaristo – "Poemas da Recordação e Outros Movimentos")


Água. Bebida e banho. Sede e sujeira. Necessária. Sendo tão abundante, nem todo tipo é para todo corpo. E no entanto, há conformidades e adequações, filtros. Aprende-se desde cedo que não tem gosto, não tem cheiro, não tem cor. Ainda assim, sendo passiva, há o alcance tátil e sutil na pele por seu contato, que se dá pela chuva, chuveiro, mar, cachoeira e pelo rio das gentes. Como análoga das geográficas formas que tentam conter a água, a deformando pelos vários caminhos que eventualmente percorre, tem-se as letras que fluem por palavras escorridas de uma língua que, obrigada a dizer, informa.

É que por meados de abril de 2020, o grupo Silo Arte e Latitude Rural[1], lançou um edital com a temática solidariedade, experimentação e colaboração sob condições de isolamento, para fomentar projetos que lidassem com o momento social vivido por conta da pandemia. Assim foi que a Keila Zaché, bióloga e doutoranda em ecologia e evolução, propôs o projeto Cartografias da Memória (2020), o qual veio a ser selecionado dentre outros tantos. Em seguida, um outro edital foi lançado, mas para pessoas que quisessem colaborar, das quais, Beatriz Arêas, Clarice G. Lacerda, Hércules Xavier Ferreira, Juliana R., Sara Lana, Victor Januário etc, foram os nomes selecionados e que, presentemente, se revezam nos mais diversos papéis de manutenção do projeto.

Fruto do momento de grande impacto que surgiu no mundo, o projeto resultou da soma dos vários afetos [2] envolvidos, por conta da aflitiva situação na qual a humanidade foi entrelaçada, que restringiu o livre trânsito dos corpos e impôs, a estes, marcadores sócio-sanitaristas de mobilidades e gestos, com regras e normas de acesso aos diversos espaços situacionais, sendo públicos ou não. Diante de tal cenário em que os caminhos se embolaram, com cada corpo sendo um perigoso vetor em potencial, novas formas de contatos foram surgindo, bem como novos desassossegos que implicariam em outras novas formas de sentir e tentar compreender o problema.


O projeto “Cartografia das Memórias” é um mapa sonoro realizado a partir de uma iniciativa colaborativa que busca registrar e preservar, através de relatos orais, memórias de vivências pessoais durante a pandemia da Covid-19.


O projeto

Oportuna foi, então, a criação de um mapa a partir dessa base afetiva –, com sua pergunta provocadora e você, como se sente? estimulando a participação de todas, todos e todes com suas falas acerca do tempo que se vive. Se os sentimentos se encontram como um turbilhão, essa própria ideia de água se fará forte na futura lembrança que virá, pois registradas virtualmente no agora, logo adiante serão recuperadas para as devidas comparações. Neste sentido e por se tratar de uma obra em aberto, os registros ora são como garrafas lançadas ao mar com mensagens dentro, em que outras pessoas podem conferir seu conteúdo, gerando aproximações e outras formas de convívio e sociabilidades, ou ainda como cápsulas do futuro, sementes que germinarão em árvore de boas flores e frutos de memórias, a serem recolhidas devidamente.

Uma cartografia se faz a partir de pontos inseridos no suporte de um mapa, que servem para preencher de significados que, pela quantidade, vão descortinar uma paisagem, inclusive uma certa paisagem sonora e afetiva. Cartografar é, nesse sentido, traçar relações entre os pontos, na determinação de rotas e roteiros, contribuindo, assim, para norteamentos e direções possíveis. As memórias cartografadas pelo projeto vão adquirir novas camadas de compreensão e mesmo usos por parte de quaisquer tipos de interesses: do histórico e antropológico, até o artístico, psicológico e filosófico, como exemplos, possuindo também um caráter existencial e sensível de muitos questionamentos, que seguem em aberto suscitando novas dúvidas, e permanecem contribuindo com a multiplicidade de traços, que necessariamente apontam para algum lugar.

Segui-los é uma opção.

Notas:

[1] Uma “organização da sociedade civil que se dedica a acolher e a difundir projetos culturais em zonas rurais” - https://silo.org.br/sobre

[2] A expressão e sua proposta inspiradora deve-se em boa parte ao livro Micropolítica - Cartografias do Desejo, de Suely Rolnik e Félix Guattari, da editora Vozes.

Conheça aqui o perfil do projeto no Instagram.

Hércules Xavier

Doutorando em Memória Social pela UNIRIO, mestre em Patrimônio Cultura pelo IPHAN, mestrando em Filosofia e Ensino pelo CEFET Maracanã/RJ, especialista em Produção Cultural pela UCAM, licenciado em filosofia pela UNIRIO, graduando em licenciatura e bacharelado em português/latim pela UERJ.